Por Edmar Neves

Na sabedoria tradicional do povo cabinda, grupo étnico do norte de Angola, existe uma série de desenhos inspirados no casco do cágado. Esses desenhos carregam a simbologia de independência, resistência e capacidade de adaptação, apontando que dá para viver em qualquer lugar levando apenas o necessário.

Essas ideias dialogam muito com o momento em que estamos vivendo, no qual novos modelos de trabalho não exigem local e horários fixos para serem exercidos. Assim, muitas pessoas decidiram abrir mão de certos confortos que um endereço fixo proporciona e transformaram seus automóveis em lares para viverem na estrada, seja pela paixão de viajar e conhecer lugares novos ou, ainda, pela vontade de estar sempre em movimento.

Foi um misto de paixão por viagens e vontade de aproveitar a vida que levou o casal Noelma e Fernanda Biasin, a No e a Fê do projeto multimídia O mundo e elas, a buscarem o sonho da moradia móvel. A suspeita de um câncer acabou por ser o catalisador para elas colocarem pé na estrada. “Antes de termos uma vida nômade, a gente tinha uma vida ‘comum’ em um apartamento. Eu trabalhava como fisioterapeuta e a No como personal trainer e tínhamos a vida corrida igual a de todo mundo”, relembra Fernanda.

Felizmente, Noelma descobriu que seu tumor era benigno, mas o casal resolveu tirar um ano sabático da mesma maneira. Como já haviam se programado para passar um longo período com pouco dinheiro – e era possível viver sem muitos confortos – resolveram realizar esse sonho que nutriam há tempos.

“Na verdade, vimos que em todos esses anos juntas nós estávamos trabalhando muito e vivendo pouco. Entendemos que se a No não tivesse sobrevivido ao câncer, não teríamos boas lembranças de aventuras para guardar na memória, e por isso demos um tempo para aproveitar as coisas boas da vida”, comenta Fernanda Biasin.

E foi assim que elas venderam tudo que tinham e foram para a Europa. No e Fê compraram um carro, colocaram seus dois cachorros dentro e partiram para uma viagem iniciando na Itália e visitando sete países europeus em nove meses.

Com essa experiência na bagagem, elas decidiram voltar para o Brasil e montar um motorhome. E dentro desse veículo o casal decidiu morar pelas estradas da América. “Os extremos das Américas” é como chamaram o desafio de visitar desde a cidade mais ao sul do mundo, o município de Ushuaia na Argentina, até o Alasca, o estado mais ao norte dos Estados Unidos.

O dia a dia de uma vida de aventuras

Essa primeira experiência em solo europeu foi bastante importante para Fernanda e Noelma entenderem como é o cotidiano  na estrada. “Quando nós construímos o nosso motorhome já sabíamos o que iríamos precisar para ter mais conforto e o quanto economizaríamos de hospedagem”, explica Fernanda. “E hoje já estamos tão acostumadas que até sobra espaço no carro”, complementa.

Pensando na rotina da estrada, o primeiro grande desafio da vida nômade é se acostumar com a logística de sempre estar em trânsito. Caso o veículo escolhido seja um motorhome é preciso saber o básico de mecânica para não ficar na mão, assim como manter a caixa d’água cheia, esvaziar o banheiro químico, deixar o ambiente o mais limpo e organizado possível, tanto por conta do espaço pequeno quanto para estar preparado para partir a qualquer momento.

Além disso tudo é preciso encontrar locais seguros para estacionar e para dormir, como praças, postos de gasolina frequentados por caminhoneiros, locais próximos a postos de polícia, entre outros.

Caso haja crianças na viagem, a dinâmica muda bastante, sendo preciso ficar atento com a educação delas, com o conforto e a saúde. A mesma regra de cuidados redobrados vale para quem quer levar consigo os seus pets, pois é preciso observar o comportamento do bichinho e ver se ele consegue se adaptar à rotina de viagens.

O roteiro de viagem varia bastante de acordo com a intenção da pessoa. No caso de Fernanda e Noelma há um roteiro pré-estabelecido, mas também bastante flexível. “A gente sempre dá preferência para cidades pequenas e quando é uma cidade muito famosa ou grande, que vamos para produzir conteúdos para web, ficamos apenas o tempo necessário no lugar”, explica Noelma. 

“No mais, temos esse projeto de viajar até o Alasca, mas escolhemos uma cidade que queremos conhecer e vamos adequando a nossa rota a partir disso”, complementa Fernanda.

Também é bom estar preparado para dificuldades das mais variadas possíveis envolvendo questões de segurança, como evitar ficar em locais desertos e afastados, e problemas corriqueiros a exemplo da quebra de equipamentos. “Uma vez encaramos um frio de -16ºC no Chile e o nosso aquecedor quebrou pois ele aguentava no máximo a temperatura de -8ºC”, relembra Fernanda.

“Mas tirando esse susto, nós nunca tivemos nenhum grande problema em relação à segurança seja aqui no Brasil, seja na Europa, nunca passamos por nenhum problema desse tipo”, finaliza Noelma.

Uma das maiores vantagens da experiência da vida nômade é poder ficar mais tempo nos lugares. É possível ir além do turismo convencional e vivenciar a rotina do local, conhecer pessoas novas, construir laços para a vida toda e experimentar outras culturas e formas de viver.

Fazendo dinheiro na estrada

O casal conseguiu fazer dessa aventura uma fonte de renda ao utilizar as redes sociais de maneira monetizada. “A gente tem um blog de viagens, canal no Youtube, perfil no Tik Tok, Kwai e Instagram, vendemos produtos exclusivos em nossa loja e também fazemos parcerias com outras empresas, então hoje o nosso trabalho é 100% nas redes sociais”, afirma Noelma. 

Mas se engana quem acha que trabalhar com redes sociais é algo fácil, “como nós não somos da área de produção de conteúdo, estamos sempre estudando, fazendo cursos e aprimorando nossa produção porque, apesar de não parecer, dá um baita trabalho e consome muito tempo”, afirma Fernanda. 

Além disso, existe uma gama de outros trabalhos que podem ser feitos online, ou seja, na modalidade home office, permitindo que as pessoas não fiquem presas a um local para ter o seu ganha pão. “É bom ficar atento, pois a internet nas estradas normalmente não é de boa qualidade e isso é algo a ser levado em consideração quando se está viajando”, alerta Fernanda.

Dicas para quem quer se aventurar

Planejar bastante antes de dar o primeiro passo.

É importante se planejar em vários aspectos, principalmente de maneira financeira. “Nós já vimos muitas pessoas abandonando o projeto em pouco tempo e até mesmo casais se separando por terem dificuldades financeiras”, explica Noelma.

“E o que era para ser uma experiência leve, se torna extremamente pesada e até mesmo perigosa caso a pessoa não tenha uma reserva de dinheiro para lidar com algum perrengue. E nós mesmas teríamos nos programado mais e melhor se pudéssemos voltar no tempo”, complementa Fernanda.

“Nós até largamos tudo que tínhamos e fomos para a estrada, mas não fizemos isso do dia para a noite. Por isso digo que um pouco de planejamento ajuda e muito a tomar essa decisão e não se arrepender depois”, comenta Fernanda.

Experimente antes.

Outro ponto importante é saber que não é qualquer pessoa que consegue se adaptar a esse estilo de vida. Nesse sentido, a dica é ter uma curta experiência com uma viagem de algumas semanas para saber como são as dinâmicas, quais as dificuldades e o quanto a pessoa quer abrir mão de seus confortos para viver na estrada. Lembrando que é possível sim ter uma vida bastante confortável em um trailer ou motorhome. “No mais, se a pessoa tem essa vontade, tem esse bichinho dentro dela – como diz a No –, às vezes só falta a ação, então vai! Se planeja e mete o pé na estrada, pois é uma experiência que muda a vida inteira da pessoa”, finaliza Fernanda.